quinta-feira, 24 de julho de 2014

Júlia

É imperativo que traduza a solidão do seu tempo numa sucessão de coisas sem importância que lhe possam abalar os sentidos de forma crónica. Nunca soubera como os escolhia porque talvez estivesse certa de que não o fazia. Os dias em que os seus membros a envergonhavam, em que repugnava não ter outra impermeabilidade, em que parecia só se conseguir focar detalhadamente no que a excruciava. Era engolida pela consciência de que por mais eloquente que fosse, jamais conseguiria precisar a alguém a dimensão da sua mágoa, a velocidade a que se agigantava a sensação de impotência para firmar as suas convicções relativamente a uma despedida que precisaria de ter coragem para implementar na sua ventura. Júlia podia transparecer uma conduta pouco saudável a quem a encontrasse ao entardecer, escondida por entre as camadas que cobriam a sua cama, de semblante impenetrável e olhar desaustinado, equilibrando-se numa linha ténue que a mantinha entre o lacrimejo e a condenação ao silêncio. Desengane-se quem pudesse equacionar que não estaria no seu perfeito juízo. Era precisamente durante este intermináveis monólogos que se sentia no apogeu da sua lucidez e era indubitavelmente como consequência da mesma que se sentia tão dolorida e envergonhada da sua existência pelo que a mesma acarretava. Precisava demasiado dos outros, mas era daqueles que lhe ensinaram ser normal precisar mais que guardava mais desencanto. Tal facto acabava por conceber o pensamento de que eventualmente os cânones em que crescera estivessem errados e que deveria então entregar o seu amor à família que escolhera, não sem colocar a hipótese de que os primeiros pudessem estar apenas errados relativamente à parte boa da equação e que também a família que escolhera poderia deserta-la mais tarde ou mais cedo, concluindo assim que teria que continuar a entregar-se pelo prazer de o fazer e na expectativa de se satisfazer com as pequenas migalhas de retribuição que lhe fossem atirando por engano. Achava-se demasiado maravilhosa para o seu mundo, arrependia-se de não ter o poder de o subjugar a si embora soubesse que nunca o faria, recriminava-se por ser tão competente e no entanto deixar que o seu apresso pela liberdade alheia a condicionassem na forma como lidava com aqueles com quem interagia. Foi sempre por este motivo que precisara de aligeirar o seu quotidiano com coisas desinteressantes, frívolas e fúteis. Pelo pânico que alimentara de ouvir os seus pensamentos nos espaços em branco que as suas horas contemplavam. Apesar do seu masoquismo assumido, Júlia sabia que só idolatrava a dor desta maneira peculiar que lhe permitia intelectualiza-la, porque no fundo sempre foi tendo arcaboiço de sobra para que a conseguisse dobrar. Jamais saberemos o que acontecerá no dia em que exceder a dose e as suas capacidades não conseguirem atribuir-lhe novamente a vitória.

By Darko

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