quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Casualidades proporcionadas por uma inversão de contexto

Hoje acordei estupidamente cedo para constatar que é domingo. Nunca fui apreciador de dias de transacção embora goste de ceder ao inesperado de me surpreender com a bênção de praticar o que é suposto ser correcto. José Manuel abriu os olhos e percebeu que poderia aproveitar o dia em que não ousamos contribuir de forma relevante para a nossa vida a praticar qualquer outra actividade que não lamentar os lapsos de memória consequentes da noite anterior. Demorei claramente menos que o habitual a obrigar o corpo em que Deus me aprisionou a abandonar o leito ao qual habitualmente me confino mais do que seria desejável.Decidi ceder aos caprichos do meu intolerável ego e arrastar-me até ao delicioso Mercado de Fusão do Martim Moniz de forma a degustar um maravilhoso sushi ao som de músicas do mundo enquanto o sol me acariciava a face de musculatura apática. É impressionante como uma embalagem nova tem o poder de renovar os consumidores de um produto. O Martim Moniz é agora um local de eleição, já que se encontra numa posição geograficamente conveniente e ainda me proporciona um consumo exacerbado e económico da minha mais recente adição. Não se desiludam, referia-me apenas ao bem sucedido poder de sedução que o peixe cru decidiu exercer sobre mim de forma avassaladora e indiscreta. Na praça, entoa-se uma viagem pelos mais diversos universos musicais ao mesmo tempo que nos é oferecida uma variedade qualitativa de gastronomias distintas. O cenário apresenta-se maquilhado e todos os seus figurantes se afiguram com uma aparência claramente distinta do anterior reflexo pouco subtil do universo da emigração ilegal, do tráfico de droga e da prostituição. A brisa está transfigurada, e trate-se ou não de um engodo inteligentemente concebido de forma a promover os novíssimos e horrorosos apartamentos que se encontram à venda no espaço em questão, eu tenho usufruído de forma estupidamente agradável e consumista do que nos é proposto pelas remodelações de frequência e oferta do anteriormente desfigurado Martim Moniz. Embora a curiosidade relativa à comida indiana, africana e vegetariana vá ocupando lugar de destaque no meu pensamento, eu acabo sempre por me sediar perto do Sushi Spot e do cantinho de petiscos lusos que o ladeiam. Acabei por petiscar umas gambas ao alhinho e um fresquíssimo Sushi to Sashimi. Acaba por ser irónico como um prato japonês, feito por portugueses, num território habitualmente povoado por emigrantes provindos dos mais exóticos locais do mundo, acaba por ser o mais característico e bem executado que alguma vez comi. E olhem que não foram poucos aqueles que já foram encarcerados pelas minhas papilas gustativas sedentas de anestesiar a sua mais recente e opressiva obsessão por tal iguaria. Foi com um apetite matinal desinteressado que usufrui compulsivamente de um momento de insubordinada banalidade e encantadora satisfação. Quando percebi, já os meus sentidos se hiperbolizavam de forma a alertar-me para o facto de eu estar consideravelmente mais acordado do que quando ali chegara. Era domingo, não passava demasiado do meio-dia e eu estava a viver no dito sentido da palavra como há demasiado tempo não fazia. Como se de um orgasmo se tratasse, acabei a minha refeição e percebi que nada mais do que voltar para casa me pareceria plausível. Tudo o que é bom, acaba porque assim deve ser. Esticar seria apenas correr o risco imbecil de manchar uma pintura sublime, proporcionada por uma contrariedade ao meu quotidiano desprezível. Levantei-me em plena contemplação e percebi que não me privaria de perpetuar o momento com um envolvente sumo de melão e lima. Foi com um tremendo semblante de missão cumprida que me coloquei a caminho de casa, preenchido de sentimentos leves e superficialmente deliciosos. Ao longo desse percurso, sou inesperadamente assaltado(não por um transeunte) pela dúvida pioneira de investigar o renascido Intendente, de forma a constatar se o êxito das mais recentes reestruturações também se lhe aplicava. Deparo-me com um pavimento imaculado e luminoso, num largo decorado por uma apelativa fonte e uma série de personagens sorridentes que dançavam ao som de música resultante da década de 50.Percebo que estou na presença de uma novíssima residência artística, o que rapidamente justificou o ambiente cultural que ali, inesperadamente, se vivia. Pouco depois, sou invadido por uma majestosa fachada de azulejos cuidadosamente pintados e uma esplanada de aspecto humilde se inundava de jovens estrangeiros e pessoas de semblante instruído. Tal equilíbrio podia requerer, de forma tendenciosa, a presença de duas forças policiais, e é com espanto que percebo que também a autoridade pode ser bafejada com um imbecil e honesto sorriso de satisfação. Foi nesse preciso momento que o destino resolveu contrariar tão absurda tendência e colocar na minha paisagem um casal claramente esculpido por uma vida errante e marginal. O homem trazia consigo uma cara desfigurada e uma dentição incompleta, enquanto a jovem de magreza incalculável(porque,mesmo não sendo uma "gordinha", certamente arrotava alto, praguejava e urinava na em qualquer sítio) apresentava um ar debilitado e um dos braços amputados. Percebia-se que eram um reflexo do que nos era incutido ser o Intendente. As mãos e as vestes manchadas, enquanto a pele e o olhar revelavam o consumo de substâncias corrosivas. Percebi que me era provado que todas as mudanças são graduais ou que nada realmente muda. Perdido nas minhas constatações, dou conta que se avizinha o momento em que me cruzarei com o casal de aspecto contrastante com todo o início do meu deslumbrante domingo. De ar insatisfeito e trejeitos bruscos, o individuo que pelo braço que sobrava arrastava a sua acompanhante, resolve deixar escapar por entre os dentes que lhe sobravam em tom de protesto: "Isto é uma vergonha!O que isto era e o que isto é!"


Não consegui deixar de me rir de forma compulsiva quando percebi que o abismo que separa as perspectivas do mundo em relação a determinado assunto pode ter tamanha dimensão, tornando-se claro que para que uns ganhem, outro alguém tem que perder. Um dos agentes não se escusou a manifestar a sua compreensão do motivo que me fazia sorrir e também ele soltou uma gargalhada. Por esta altura, já não sabia se preferia o sushi ou a memória daquele desabafo por parte do pobre desgraçado que ali pretendia afogar os desaires da sua vida.
Afinal, não é só de pequenos prazeres que ela é feita!

By Darko