segunda-feira, 22 de setembro de 2014

- Abandono - As amizades perversas de Júlia Barnabé


"Júlia nunca gostara de surpresas e o acaso sempre fora um fantasma intimidante. Foi no momento em que mais se esforçou para se equilibrar no frágil trapézio dos afectos que este se escangalhou diante dos seus olhos sem que nada o fizesse prever, porque há castelos que exigem uma construção bilateral e a sua contra-cena pura e simplesmente esquecera de decorar as suas falas. Era parte de si entregar-se muito mais do que sabia fazer crer e a perda de um dos projectos mais luzidios que alguma vez idealizara era tão aterradora como foi inesperada. Embora a sua vida profissional florescesse, lenta e árduamente como qualquer outra guerra contemporânea, e os seus amigos fizessem as demonstrações mínimas de preocupação que lhes seria requerido nos intervalos do seu natural egoísmo urbano, Júlia estava de novo entregue ao deserto da solidão e prestes a ter que se debater com uma daquelas etapas da vida que almejaríamos sempre evitar. O seu comodismo e maturidade já não lhe permitiam que fosse confortável não gostar de partilhar o seu pleno e as trivialidades que promoviam o convivio entre as pessoas nos dias que correm eram programas que já não lhe encantava de todo assistir. Precisava de sentir que fora a hipótese mais palpável de ser feliz que Filipe alguma vez vivera. Faltava-lhe desesperadamente o seu arquear de sobrancelha perante os seus ímpetos descontrolados. A sua intransigência para que adormecesse em consonância com o seu relógio. Júlia sentia-se profundamente encruzilhada nos destroços do que deles sobrava, desorientada com esta liberdade opressiva que lhe fora despejada nos braços e com a qual nada sabia fazer. Todas as ideias lhe arranhavam as extremidades da cabeça e qualquer atitude que pudesse tomar lhe parecia errada perante tanta indiferença e desapego. Equacionava violar essa liberdade, rasgar-se e destruir-se para que Filipe um dia viesse a sentir remorsos dos remorsos que Júlia lhe ansiava fazer sentir. Afigurava-se por demais vil o abandono demonstrado pela história que ambos viveram e que lhe parecia acabar de forma inglória no egoísmo masoquista de Filipe ainda se prender a si por mera descarga de consciência. Impaciência era o que lhe tomava e dominava o espectro emocional que de momento lhe parecia tão irracional como é o amor e a dor daí consequente. O coração nunca mente e a mão ausente de Filipe parecia-lhe condenar a mais bonita história de amor que alguma vez se atrevera a ser escrita. Sentia falta de quando ele a repreendia por não lavar as batatas antes de as cozinhar, de como ele se debatia pela sua atenção sempre que ela se perdia nas teias do smartphone, de como ele pousava as palmas dos seus pés adormecidas na barriga dos seus, de como os seus corpos comunicavam durante o sono numa dança lque apenas quem se compreende sabe executar e até do seu sorriso sem dentes quando pretendia ser politicamente correcto porque não conseguia ser honesto. Júlia era entrelaçada nas vielas da impotência e embora soubesse que sobreviveria, alimentava a ideia de que não queria, porque sempre acreditara que embora não pudesse controlar as emoções de outrem, poderia controlar as suas atitudes e o que delas emanava. Por um lado queria ser distante mas não suportava a ideia de deixar que as coisas lhe fugissem de forma tão rebelde e impertinente. O fosso que entre eles se agigantara era cruel e confuso e nada de concreto se lhe afigurava plausível. Se seguisse o seu coração, humilhar-se-ia até se sentir miserável e provavelmente ainda se afastaria mais dos seus intentos, já que conhecia bem o efeito pouco atractivo dessa submissão à qual já se submetera sempre que fora hipnotizada pelo suicídio de amar. Se cultivasse um afastamento sabia que por desinteresse, preguiça, ou orgulho, iria morrer embrenhada numa espera interminável até que Filipe se lembrasse de que ela existe. As certezas dele contrastavam de forma absurda com as suas dúvidas e a ideia de que se tornara uma prisão e não um recobro para a pessoa que amara era particularmente doentia. Ele dizia-lhe que ambos se conheciam bem demais para decifrar facilmente quais os sentimentos que povoavam os seus íntimos e por esse prisma Júlia queria acreditar que era inesquecivel, que tinha a capacidade de lhe oferecer um novo mundo e que novas directrizes para o seu compromisso se desenhariam através das linhas do tempo. Se as coisas que afogaram a sua caminhada conjunta eram solucionáveis, porque é que ele parecia investir na ideia de que será mais fácil deixa-la para trás quando ainda se atreve a emitir sinais opostos? Porquê é sempre a questão...Se existe saudade, lembrança e amor por endereçar, devemos garantir sempre que chega ao seu destino, porque por banal que pareça, são as coisas que se enraízam em nós e nos dão alento para os restantes paradigmas da existência. Mesmo que nos desequilibre, nos mude, e nos faça duvidar de nós, devemos lembrar-nos que são apenas consequências do monstro do amor, aquele que todos sonhamos encontrar e que devemos preservar sempre a todo o custo."

"As amizades perversas de Júlia Barnabé" by Darko

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